Toda verdade é a verdade de deus

Lucas Lauriano

Lucas Lauriano

· 9 min leitura
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Toda Verdade é a Verdade de Deus

Enxergando a glória de Deus nos elementos da cultura

A cultura e o cristão: entre o medo e o consumo acrítico

Vivemos em uma época em que a cultura disputa ferozmente nossa atenção. Músicas, filmes, livros, séries e redes sociais movimentam bilhões e moldam nossa imaginação, nossos afetos e nossa visão de mundo. Não existe neutralidade cultural: todos somos formados por aquilo que consumimos.

Por muitos anos, porém, parte da tradição evangélica brasileira lidou com a cultura a partir do medo. Tudo o que não era explicitamente “gospel” era visto como suspeito, quando não automaticamente condenado. Frases como “rock é do diabo” ou “isso é secular” tornaram-se comuns. O problema é que esse afastamento raramente foi acompanhado de ensino bíblico sólido sobre discernimento .Ao longo da história da igreja contemporânea, elementos da cultura, como o teatro, a dança e diferentes estilos musicais, foram, em muitos momentos, incorporados ao contexto do culto

Hoje, o cenário se inverteu. Muitos cristãos consomem praticamente tudo, sem critérios, filtros ou reflexão teológica. Falta uma teologia que ensine não apenas o que evitar, mas como julgar. Diante disso, algumas perguntas precisam ser feitas: tudo o que não é cristão é, necessariamente, profano? E tudo o que carrega o rótulo “cristão” é automaticamente fiel ao evangelho?

O princípio bíblico e histórico do discernimento

A Escritura nos oferece um caminho mais sábio. Em 1 Tessalonicenses 5:21, o apóstolo Paulo orienta a igreja: “Examinai tudo. Retende o que é bom.” O chamado bíblico não é ao isolamento cultural, mas ao discernimento espiritual.

Esse princípio atravessa toda a história da igreja. Agostinho de Hipona, teólogo do século IV, vivendo no final do Império Romano e profundamente formado pela cultura clássica, escreveu em suas Confissões: “Onde quer que eu encontre a verdade, ela pertence ao meu Deus.” Para Agostinho, a verdade não perde sua origem divina por aparecer fora do ambiente cristão.

O mesmo Agostinho, em De Doctrina Christiana, afirmou que se filósofos pagãos disseram algo verdadeiro e compatível com a fé cristã, isso deve ser tomado e utilizado para o serviço de Deus. Sua preocupação não era proteger os cristãos da cultura, mas ensiná-los a usá-la com sabedoria.

Séculos depois, João Calvino, reformador do século XVI e uma das principais vozes da Reforma Protestante, reforçou essa visão. Em suas Institutas da Religião Cristã, Calvino afirma que, se o Senhor quis que até mesmo em fontes profanas emanasse alguma verdade, é para que reconheçamos que toda verdade procede dEle. Essa afirmação está ligada à doutrina da graça comum: Deus distribui dons, inteligência e percepções verdadeiras mesmo fora da igreja, para preservação do mundo.

se o Senhor quis que até mesmo em fontes profanas emanasse alguma verdade, é para que reconheçamos que toda verdade procede dEle

No contexto do puritanismo inglês do século XVII, o pastor Richard Baxter também ecoou essa convicção ao afirmar que todo verdadeiro conhecimento é um reflexo da luz divina, independentemente de quem o comunica. A fonte da verdade não é o homem, mas Deus.

William Perkins, outro teólogo puritano do mesmo período, foi ainda mais direto ao dizer que a verdade dita por um infiel não deixa de ser verdade por causa da pessoa que a diz. A verdade permanece verdade, pois sua autoridade não está no mensageiro, mas em sua conformidade com a realidade criada por Deus.

Já no século XX, o teólogo reformado Cornelius Van Til, ao desenvolver a apologética pressuposicional, sistematizou esse pensamento ao afirmar que não existem “fatos brutos”. Todos os fatos são o que são por causa do plano soberano de Deus. Por isso, sua conhecida afirmação: toda verdade é a verdade de Deus.

Ecos da verdade na cultura

Essa compreensão nos permite enxergar elementos da graça comum refletidos na cultura, mesmo fora do ambiente explicitamente cristão. Na música brasileira, por exemplo, Cartola, em A Cor da Esperança, expressa de forma poética a intuição humana de que a dor não é definitiva e de que há sentido em esperar por um amanhã melhor. Mesmo sem recorrer à linguagem bíblica, a canção toca em temas profundamente humanos, que dialogam com a experiência universal de sofrimento e expectativa de redenção. Essa esperança ecoa diretamente a verdade bíblica expressa no Salmo 30:5: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.”

Essa compreensão nos permite perceber que, por vezes, a verdade ecoa onde menos se espera. Na música, por exemplo, a própria história do Black Sabbath desafia leituras apressadas e preconceituosas. Em After Forever, a banda apresenta uma reflexão direta sobre fé, Deus, salvação e responsabilidade moral, temas que muitos associariam exclusivamente ao ambiente religioso. A canção não surge como catecismo, mas como questionamento honesto, revelando que, muitas vezes, não é a ausência de fé que nos impede de reconhecer a verdade, mas a falta de conhecimento e a disposição em julgar antes de examinar.

Esse tipo de postura revela um problema recorrente: a tendência de rejeitar tudo o que não carrega o rótulo “cristão”, como se a verdade estivesse confinada a determinados estilos, linguagens ou espaços. No entanto, a história da cultura está repleta de músicas, livros e filmes que articulam verdades sobre culpa, esperança, redenção, justiça e sentido com profundidade muito maior do que aquela oferecida por muitos discursos religiosos superficiais. Quando falta discernimento, confunde-se piedade com preconceito e zelo com ignorância.

No cinema, a trilogia clássica de Star Wars trabalha narrativas de queda, tentação, sacrifício e redenção. A trajetória de Anakin Skywalker ilustra de forma poderosa a realidade da queda moral e da possibilidade de redenção, ainda que de forma analógica e limitada quando comparada ao evangelho.

Esses elementos não substituem a revelação especial, mas podem funcionar como pontos de contato, ilustrações e janelas para conversas mais profundas sobre a condição humana e a necessidade da graça.

Discernimento não é mundanismo

Diante disso, surge a objeção: isso não seria mundanismo? Não seria uma defesa do consumo indiscriminado da cultura? A resposta bíblica é clara: não.

O cristão não é chamado a consumir tudo, mas a examinar tudo. O problema não está no contato com a cultura, mas na ausência de critérios bíblicos. O crente maduro julga, separa, retém o que é bom e rejeita o que é mau.

É preciso lembrar que nem todo produto rotulado como “cristão” comunica fielmente a fé reformada ou o evangelho bíblico. Ao mesmo tempo, elementos da cultura dita como "secular" podem ser usados com sabedoria para ensino, edificação e evangelização, desde que passem pelo escrutínio das Escrituras.

Ver com olhos espirituais

É por isso que escrevemos neste espaço. Não para diluir o evangelho na cultura, ou redimir tudo de que eventualmente gostamos na cultura, nem para confundir revelação com estética, mas para afirmar que o Deus que se revelou de modo supremo e extraordinário na encarnação do Deus Unigênito também permite que reflexos de sua verdade sejam percebidos no ordinário da experiência humana. Às vezes, essa percepção surge em uma simples poesia, em um livro bem escrito ou em um filme cuidadosamente construído, não como substituto da revelação especial, mas como ecos que, quando examinados com discernimento e sensibilidade espiritual, apontam para algo maior do que eles mesmos.

O mundo não se divide simplesmente entre sagrado e profano. A verdadeira divisão está entre o que reflete a glória de Deus e o que a distorce. O apóstolo Paulo resume esse chamado em Filipenses 4:8, ao exortar os cristãos a se ocuparem daquilo que é verdadeiro, nobre, justo, puro e digno de louvor.

O chamado final é à maturidade cristã: ver com olhos espirituais, analisar tudo à luz da Palavra e reter o que é bom. Porque, em última instância, essa afirmação permanece firme, bíblica e reformada:

toda verdade é a verdade de Deus.

Lucas Lauriano

Sobre Lucas Lauriano

Cristão, casado, engenheiro de software e seminarista no Seminário Martin Bucer. Formado em Sistemas de Informação, transito entre tecnologia e teologia, com muito rock’n roll como trilha sonora dessa dádiva chamada vida.